Saturday, June 9, 2012

Familiaridade vigiada


Longe da realidade violenta que lhe conferiu o nome nos anos 70, Hell's Kitchen é hoje uma pacífica mistura de personagens, culturas e credos. Tenho vivido aqui desde que vim para Nova Iorque. O lugar é barulhento, movimentado, cheio de turistas, mas está perto de tudo que gosto (teatros, parques, comércio) e devo confessar que já me sinto em casa.

Foi numa dessas manhãs frias de maio. Eu subia a rua 52 no lado oeste a caminho do trabalho quando na esquina da avenida 9 o sinal de pedestres subitamente fechou. Pra matar o tempo, comecei a observar o que acontecia à minha volta. Do outro lado da 52 fica o prédio do antigo Saint Claire's Hospital, braço do extinto Saint Vincent's. Apesar da arquitetura e localização interessantes, o prédio agoniza e faz sofrer a vizinhança. Os tapumes das janelas e as grossas correntes dos portões impedem a entrada de mendigos sem-teto que se contentam em urinar ali mesmo na calçada esverdeada pelo musgo; já os ratos e outros insetos de menor porte não parecem intimidados pelos avisos de entrada proibida e a ameaça de ação policial.

Apesar desses incômodos, era por aquela calçada que uma mulher de meia-idade, morena e gordota, enrolada da cabeça aos pés por tecidos coloridos de seda desbotada, fazia seu caminho em direção ao rio Hudson. À sua frente saltitava um menininho leve de aproximadamente sete anos. Na direção oposta, um pequeno cão subia a mesma calçada seguro pelo pulso firme de uma mulher loura diretamente egressa dos anos 70. No meio da calçada, o cão e o menino se encaram admirados e curiosos. Pacientes e resignadas, as duas mulheres se evitam. A mãe tem os olhos inquietos e a mão pronta a agarrar o menino. A dona do cão traz a coleira firmemente enrolada ao pulso e os sentidos atentos ao menor impulso do cão ou da criança. Após um momento de hesitação, o cãozinho baixa o focinho úmido tentando farejar o menino, e este aproxima as pontas dos dedos finos para sentir a maciez e o calor dos pelos do cão. Num protesto curto e simultâneo, a voz da mãe detém o menino e o pulso da dona retém o cão. Por alguns segundos, o impasse do medo os imobiliza. Então, quietamente o menino leva a mão ao bolso da calça e de lá retira uma pequeníssima gaita. Marcando o solo com o pé direito, começa a tocar para o cão uma melodia inventada. O cão reaje balançando a cabecinha peluda de um lado para o outro, numa estranha dança de sentidos. O concerto entre os dois distende as mulheres. Há troca de olhares e elas sorriem. Em rápidos balbucios, impressões suaves são compartilhadas: a frieza luminosa e inesperada daquela manhã, as promessas perdidas da infância, a saúde das crianças e dos cães... De olhos baixos, as mulheres se compadecem. O menino toca sua melodia para o cão e ambos desfrutam o raro momento de familiaridade vigiada em via pública.

Um súbito estalo interrompe o momento. Nas vozes, o tom agora mais alto, alegre e casual, adquire nuances metálicos de quebra. Recolhe-se a intimidade. Enquanto puxa o véu e confere o mau estado da calçada, a mãe chama o menino que põe a gaitinha no bolso e em alguns segundos, esquecido do cão, já quica meia quadra abaixo. Ajeitando os óculos, a mulher loura se aproxima de uma vitrine de anúncios. O cãozinho fareja as últimas informações deixadas na base de  um poste.

No meu bolso, o telefone vibra. Atravesso a avenida lendo a mensagem.

Licia Olivetti


Guarded understanding


Far away from the violent reality that gave its the name in the '70s, Hell's Kitchen is now a peaceful blend of characters, cultures and creeds. I have lived there since I came to New York. The place is noisy, busy, full of tourists, but it is close to everything I like (theaters, parks, stores) and I must confess that  somehow I feel at home there.

It was one of those cold mornings in May. I went up to W 52nd Street on my way to work when, on the corner of 9th Avenue, the pedestrian signal suddenly closed. To kill time, I started looking at what was happening around me. Across 52nd the former Saint Claire's Hospital building, a branch of the extinct Saint Vincent's is closed. Despite the interesting architecture and location, the building agonizes and makes the neighborhood suffer. The windows' boarding's and the gates' heavy chains prevent homeless beggars from trespassing, still they are quite content  peeing right there on the mossy green sidewalk, whereas the rats and other smaller insects do not seem intimidated by the prohibited entry warnings and threats of police action.

Despite those inconveniences, it was through that sidewalk that a middle-aged, chubby brunette wrapped up from head to toe by colorful fabrics of faded silk made her way down toward the Hudson River. Forerunning his mother, a lively seven year-old boy hopped up a few feet away. In the opposite direction, a little dog was coming up secured by the firm hand of a blonde woman, directly discharged from the 70s.  Astonished and curious, the dog and the boy stop and stare at each other's sights. Patients and resigned, the two women now stuck avoid acknowledge each other's presence. With attentive eyes, the mother's hand is ready to grab the boy. The leash is tightly held by the blonde woman's wrist and her senses are quite alert to the smallest sign of dog's or child's push. After a moment's hesitation, the dog lowers his moistly nose to smell the boy, and the boy slowly stretches the tips of his slender fingers to feel the softness and warmth of the dog's hairs.

Simultaneously, a motherly command freezes the child and the dog's owner pull backs the animal. For a few seconds, those quick protests bring them into a stalemate of fear. Then, quietly the boy puts one hand in his pocket and removes a tiny harmonica from there. Keeping the rhythm with his right foot, the little one starts playing an invented tune just for the dog. The animal reacts shaking his furry little head from one side to the other, in a strange dance of the senses. The concert between the child and the dog relaxes the two women. They glance at each other and smile. Babbling fast, they share some soft impressions about the unexpected brightness and coldness of that morning, the promises of a lost childhood, the health of children and dogs ... Timidly, the women interact. The boy continues to play his melody just for the dog and both enjoy a rare moment of guarded understanding on the street.

A sudden crack stops the moment. The voices' keys now higher, cheerful and casual, acquire metallic nuances of breakage. The sense of familiarity is called off. Pulling the veil while checking the sidewalk's poor condition, the mother called the boy. He puts his harmonica back in his pocket and in just a few seconds, bounces down half a block away, oblivious to the dog. Adjusting her thick glasses, the blond woman approaches a showcase ad. The dog sniffs the latest information left at the base of a lamppost.

The cell phone vibrates in my pocket. I cross the street reading the message.

Licia Olivetti

Wednesday, May 16, 2012

Eating books, May 2012


Remember those books about Brazilian literature I found in the trash and brought home? What a pity: because of the intense action of fungi, some of them are breaking like puff pastry. So to keep them intact, this week I decided to pack all of them in parchment paper. It is my last attempt to keep them at least composed, since some of them are already missing the cover and others lack the first or last page. It is interesting to see how time treats authorship, dedications, and sometimes even part of the narrative. Many of them now are just stories without beginning or end, apocryphal, without title or recommendation. With the demise of a piece of the book, time rewrites history. I wonder what the authors think about that unauthorized co-authored, imposed by the nature of things. In retrospect, the weather is co-author of our story, whether we want it or not. In the midst of many ongoing processes and the inevitability of decay, the time gnaws our desire to be eternal.

            I like the books made of paper, because they give me the olfactory and tactile sensation of the reading. But I must admit that the vision of oxidized crumbs scattered all over my living room's floor bothers me. Those fungi untie plots, resolve conflicts, abruptly terminate a discussion, and disappear with characters without the slightest regard for the author or readers. Greedy and indifferent, it is as if those fungi were saying: "- You author writes, they the readers read, we the fungi eat." It is a fatal fact. It is a final fact, yet in face of such ignominious end, my human nature compels me to react. From the bottom of the drawer I take a ball of twine soft cotton with which I bind the volumes of words wrapped in waxed paper. Then I finish it with a loose tie knot. Actually, there is no need for me to read these books again, I think, because I know their content already. But there is no need to confined them to a box either, as if they had committed a crime. The transparent alabaster color of the wrap will protect them, and the loose ribbon is more like an embellishment easy to unbind.

            I like looking at those books. They are pieces of me that are just there. A book ending up in a landfill? No sir! Between two hands or resting on a shelf, those are the perfect places for a book. A book is only another form assumed by a tree, and its handling should be as gentle as the touch of a bird.

Tuesday, May 15, 2012

Comer os livros, maio 2012


                                    

             Você se lembra daqueles livros de literatura brasileira que eu encontrei no lixo e trouxe aqui pra casa? Pois é, veja que chato: por causa da intensa ação dos fungos, alguns deles estão se quebrando como se fossem de massa folhada. Então, para mantê-los íntegros, esta semana resolvi embalar todos em papel manteiga. É minha última tentativa de mantê-los pelo menos compostos, pois a alguns já falta a capa e a outros falta a primeira ou a última página. É interessante observar como o tempo trata a autoria, as dedicatórias, e, às vezes, até mesmo parte da narrativa. Muitos deles agora não passam de histórias sem começo ou fim, apócrifas, sem título ou recomendação. Ao desaparecer com um pedaço do livro, o tempo reescreve a história. Imagino o que os autores pensariam dessa coautoria não-autorizada, imposta pela natureza das coisas. Pensando bem, o tempo é o coautor da nossa história, a gente querendo ou não. Em meio a tantos processos em curso e à inevitabilidade da decadência, o tempo rói o nosso desejo de ser eterno.

            Gosto dos livros feito de papel, pois eles nos oferecem a sensação olfativa e tátil da leitura. No entanto, devo admitir que me amola a visão dos farelos oxidados espalhados pelo chão da minha sala. Os fungos desenlaçam tramas, resolvem conflitos, encerram assuntos abruptamente, desaparecem com os personagens sem a menor consideração pelo autor ou leitores. Ávidos e indiferentes, é como se os fungos dissessem: "- Você autor escreve, eles os leitores leem, nós os fungos comemos". É fato fatal. É fato final. apesar disso, diante de fim tão ignominioso, a minha natureza humana me leva a reagir. Do fundo da gaveta retiro um rolo de barbante de algodão macio com o qual duas vezes enlaço os volumes de palavras envoltos em papel manteiga. Finalizo com um nó seguido de laço frouxo. Na verdade, não necessito ler estes livros, penso, pois já conheço seu conteúdo há muito. Tampouco os quero confinados a uma caixa como se tivessem cometido um delito. O papel transparente da cor do alabastro os protegerá, e o laço frouxo é mais um enfeite fácil de desfazer.

            Gosto de olhar para aqueles livros. São pedaços de mim que estão ali. Livro indo parar num aterro sanitário? Não senhor! Lugar de livro é entre duas mãos ou descansando na estante. O livro é só uma outra forma assumida de árvore, e seu manuseio deveria ser tão gentil quanto o toque de um pássaro.


Wednesday, March 21, 2012

The sane truth


For you never know who you are
until you find yourself exposed in a dark ravine,
lightened only by your own invasive sight.

Then you see yourself bended by in your own limbs,
wrinkled in your own skin, silken by your own hair;
and you find yourself controlled by your own muscles,
tightened  by your tense wired tendons,
your exposed heart caged
by the calcified boundaries of your own  bones.

There you are, bended over by the sane truth.

Then you will lose your dreams and the sense of worth;
you will wish for more time to spare.
Your sleepy body will yearn for a mighty anointment.
In the dusky touching, you will solely find hands 
that will tear up hope, and pain, from your gazed face.
Under the open wounds, the embossed covers will bare 
the sober truth and the upstanding light that comes
from your balmy soul 




A verdade sã


Porque nunca sabes quem és
até que te descobres nu em uma ravina escura, 
iluminado apenas pelo raio do teu olhar intruso.

Então te vês dobrado em membros,
enrugado em peles, sedoso em pelos;
e te achas todo enformado em músculos,
retesado em tensos tendões de arame,
engaiolado o teu coração exposto
pelas arestas calcificadas do esqueleto.

Ali estás nu, curvado sob a verdade sã.

Perderás o sonho e o útil intento, 
quererás viver mais, e o corpo cansado
buscará no sono um poderoso unguento.

Na escuridão do tato, só encontrarás as mãos
que te arrancarão da face a esperança e a dor,
e sob a pele viva, marcados os teus desvãos,
a verdade sóbria e a luz 
que da alma emana o teu calor. 

Tuesday, February 14, 2012

Caminhos comuns


    A Fonte, NYC Fev2012 LRO

Com um sorriso ou um olhar de entrega, os filhos nos dão a conhecer o que é essencial na vida: experimentar o amor incondicionado. Criar filhos é seguir um curso de humildade enfeitado pela compreensão mutuamente profunda. É o amor parental que faz jorrar a força que temos dentro de nós.

A caminho da maturidade, os filhos vão aperfeiçoando a sua capacidade de absorver  experiências. Na vida adulta já deixaram com os pais a sua infância.  Esta é uma herança ao revés que nos assiste na troca de percepções que diferem segundo o tempo e a personalidade de cada um.

No correr da vida, lentamente os filhos tomam a dianteira. A partir daí nossa tarefa passa a ser a de reaprender com eles para que a renovação seja permanente.  

Os filhos logo descobrem que estamos um pouco menos assertivos, mais indagadores; em muitos aspectos, reformados; em outros, ainda na condição de noviços. Livres da responsabilidade de formá-los, podemos ser mais espontâneos. Estamos agora atados à vida somente pelo prazer de sempre aprender com ela,  até que a juventude eterna venha nos buscar.

Sem esse processo de contínua renovação, nossas mentes se fossilizam, nossa alma se enterra num mar de ressentimentos, saudosismo e isolamento progressivo da atualidade. Diante deste cenário, revisitar a realidade interna se torna imperativo. Precisamos compreender as tristezas e aceitá-las; admitir a saudade, mas somente com o intuito de reinventá-la, pois só assim o passado se transforma em memória do futuro.

Aprender é difícil e reaprender pode ser muito doloroso, mas se o primeiro é fundamental para a sobrevivência, o segundo é absolutamente necessário para a reafirmação e a renovação da individualidade. Só assim podemos voltar a produzir novidades que tenham significado para nós mesmos, e, com alguma chance, também para a sociedade. Sinto que na atual fase da minha vida, é minha responsabilidade ensinar os filhos a se renovarem, e isso só posso fazer através do exemplo vivido com prazer.

Nós somos o depositório da experiência dos jovens, mas são eles que traçam a nossa rota comum para o futuro. É uma lei da vida. De mãos dadas, a velha infância e a nova experiência seguem para um porvir fundado no passado, mas com os olhos nos paralelos do futuro.


Continuamente agradeço a Deus pelos filhos que tenho.

Licia Rabelo
NYC, 14. 02. 2012