Thursday, March 4, 2010

Soneto do Abandono, Licia Olivetti NYC 2010 ©


Quem te acudirá,
cão das avessas?
Quem cerzirá teu laço roto,
cortado, arrancado
que foi de ti todo o bem
e todo o mal e toda a vida?
Quem ouvirá teus gritos surdos,
surpresa antiga,
as alucinações, os surtos?
Ao cair da tarde é que a inimiga surge.
E quem te cortará os pulsos
e quietamente encerrará teu curso?

Falhaste, tua vida é um insulto.
Teu andar são sustos.
A sentença é bruta:
na pedra fria a cabeça pousa.
Ao lado, a guilhotina, o machado e a espada.
Será por fim tão cruel a pua
para quem na vida ousa
andar com a alma nua?
Pensaste sem sentir,
sentiste sem morrer,
amaste sem mentir,
sofreste sem correr.
O homem parte sem voltar,
o leite ainda a lhe escorrer dos beiços.
Quem te dera descer da vida, ressemear o tempo
a teu favor, atender desejos que fossem teus!

Só na escuridão me reconheço.
Busco-te em desvãos,
em calhas, em tugúrios.
Estás em toda parte.
Todo no começo.
Dos meus gritos, só há murmúrios,
dos meus gestos, somente as mãos
cessarão o quanto fui até os ínfimos resquícios.
Despertarás um dia
do pesadelo que te inflingi
e descobrirás que estás calado.
Somente a teu lado,
a minha ausência.

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