Longe da realidade violenta que lhe conferiu o nome nos anos 70, Hell's
Kitchen é hoje uma pacífica mistura de personagens, culturas e credos. Tenho
vivido aqui desde que vim para Nova Iorque. O lugar é barulhento, movimentado,
cheio de turistas, mas está perto de tudo que gosto (teatros, parques,
comércio) e devo confessar que já me sinto em casa.
Foi numa dessas manhãs frias de maio. Eu subia a rua 52 no lado oeste a
caminho do trabalho quando na esquina da avenida 9 o sinal de pedestres subitamente
fechou. Pra matar o tempo, comecei a observar o que acontecia à minha volta. Do
outro lado da 52 fica o prédio do antigo Saint Claire's Hospital, braço do
extinto Saint Vincent's. Apesar da arquitetura e localização interessantes, o
prédio agoniza e faz sofrer a vizinhança. Os tapumes das janelas e as grossas
correntes dos portões impedem a entrada de mendigos sem-teto que se contentam
em urinar ali mesmo na calçada esverdeada pelo musgo; já os ratos e outros
insetos de menor porte não parecem intimidados pelos avisos de entrada proibida
e a ameaça de ação policial.
Apesar desses incômodos, era por aquela calçada que uma mulher de
meia-idade, morena e gordota, enrolada da cabeça aos pés por tecidos coloridos de
seda desbotada, fazia seu caminho em direção ao rio Hudson. À sua frente saltitava
um menininho leve de aproximadamente sete anos. Na direção oposta, um pequeno
cão subia a mesma calçada seguro pelo pulso firme de uma mulher loura
diretamente egressa dos anos 70. No meio da calçada, o cão e o menino se
encaram admirados e curiosos. Pacientes e resignadas, as duas mulheres se
evitam. A mãe tem os olhos inquietos e a mão pronta a agarrar o menino. A dona
do cão traz a coleira firmemente enrolada ao pulso e os sentidos atentos ao
menor impulso do cão ou da criança. Após um momento de hesitação, o cãozinho baixa
o focinho úmido tentando farejar o menino, e este aproxima as pontas dos dedos
finos para sentir a maciez e o calor dos pelos do cão. Num protesto curto e
simultâneo, a voz da mãe detém o menino e o pulso da dona retém o cão. Por
alguns segundos, o impasse do medo os imobiliza. Então, quietamente o menino
leva a mão ao bolso da calça e de lá retira uma pequeníssima gaita. Marcando o solo
com o pé direito, começa a tocar para o cão uma melodia inventada. O cão reaje balançando
a cabecinha peluda de um lado para o outro, numa estranha dança de sentidos. O
concerto entre os dois distende as mulheres. Há troca de olhares e elas sorriem.
Em rápidos balbucios, impressões suaves são compartilhadas: a frieza luminosa e
inesperada daquela manhã, as promessas perdidas da infância, a saúde das
crianças e dos cães... De olhos baixos, as mulheres se compadecem. O menino
toca sua melodia para o cão e ambos desfrutam o raro momento de familiaridade vigiada
em via pública.
Um súbito estalo interrompe o momento. Nas vozes, o tom agora mais alto,
alegre e casual, adquire nuances metálicos de quebra. Recolhe-se a intimidade. Enquanto
puxa o véu e confere o mau estado da calçada, a mãe chama o menino que põe a
gaitinha no bolso e em alguns segundos, esquecido do cão, já quica meia quadra
abaixo. Ajeitando os óculos, a mulher loura se aproxima de uma vitrine de
anúncios. O cãozinho fareja as últimas informações deixadas na base de um poste.
No meu bolso, o telefone vibra. Atravesso a avenida lendo a mensagem.
Licia Olivetti